Introdução
Nossa Diocese de Piracicaba vai completar oitenta anos da sua criação no próximo ano. Em preparação para esse jubileu, queremos realizar, em dois mil e vinte e três, um ano missionário. Essa iniciativa tem o objetivo de envolver o clero, os fiéis leigos e todas as realidades diocesanas. O caminho que queremos seguir vai exigir de nós atenção e escuta do Espírito que fala à Igreja. Também precisamos considerar o contexto atual de pós pandemia, e suas consequências mais diretas, aumento da pobreza, pessoas em maior risco de vulnerabilidade, efeitos do isolamento social e polarização política.
No mês de setembro do ano passado, durante a visita ad limina Apostolorum, no encontro com o Papa Francisco, ele nos disse uma frase que guardei na memória e no coração: “Jesus está na porta das nossas igrejas e está batendo. Precisamos saber se ele está do lado de dentro ou do lado de fora”. Durante a conversa o Papa explicou a provocação desse pensamento, porque se Jesus está do lado de dentro, ele quer sair para ir a outros lugares, mas se ele está do lado de fora, ele quer entrar em nossas comunidades. Na realidade, esse pensamento reflete duas formas ou dois modos de ser igreja.
O primeiro reflete o jeito de ser Igreja em saída, pronta para servir e disposta a enfrentar os desafios do tempo presente. Uma Igreja que acompanha o seu Senhor e que não teme a cruz, como forma de testemunhar o amor de Deus no mundo. Um Igreja que arrisca, que se fere, que se suja de lama porque saiu pelas estradas. O segundo modo reflete uma Igreja mais acomodada e presa às estruturas, fechada “na minha função”, “na minha pastoral”, “na minha paróquia”. Uma Igreja com obsessão pelos procedimentos e que acaba ignorando a pessoa. Esse pensamento sobre os modos de ser Igreja nos inquieta?
A proposta de um ano missionário para a Diocese de Piracicaba, assim como a sinodalidade desejada pelo Papa Francisco, requer de todos nós, clero e fiéis leigos, uma renovação espiritual. Essa renovação deverá gerar em nós um autêntico desejo de acompanhar o Senhor, caminhando com Ele pelas ruas, pelas estradas e nas periferias existenciais. Durante o primeiro semestre desse ano, teremos uma intensa programação de preparação e formação e no segundo semestre vamos sair em missão.
1 – Espiritualidade e missão
“Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E, apontando com a mão para os seus discípulos, acrescentou: Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12, 47-50)
A espiritualidade pode ser definida, de maneira geral, como a vida segundo o espírito. Há diferentes correntes e formas de espiritualidade, que buscam levar a pessoa humana ao aprofundamento de qualidades e virtudes. O nosso tempo é marcado por um renovado interesse pelo espiritual, que vem da necessidade de uma maior interiorização. A modernidade, industrializada e tecnológica, ofereceu um mundo segundo a medida do homem, com critérios de produtividade, valor econômico e massificação. Mas a pessoa humana transcende a toda essa realidade material. “A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual”[1].
A espiritualidade cristã nasce do encontro com a Pessoa de Cristo, um encontro que reorienta e ressignifica, decisões e atitudes, apontando um novo horizonte[2]. Pelo batismo, o cristão é nova criatura, chamado a assumir e manifestar a sua fé, com alegria e esperança. O cristão alimenta a sua fé na escuta e meditação da Palavra de Deus, na celebração dos sacramentos, particularmente na Eucaristia, nas práticas da piedade popular[3] e no exercício da caridade. Cada uma dessas realidades é lugar de encontro com Cristo, que precisam ser devidamente valorizadas, para que a fé e as obras não se confundam e nem se separem.
Para o cristão, que tem a fé e a espiritualidade devidamente alimentada e fortalecida, a missão é uma exigência que se transforma em urgência, sobretudo neste tempo de pós-pandemia. A missão é uma experiência que faz reviver o êxodo e que consolida a Igreja em saída. Nas palavras do Papa Francisco, “a missão da Igreja não é a propagação duma ideologia religiosa, nem mesmo a proposta duma ética sublime. No mundo, há muitos movimentos capazes de apresentar ideais elevados ou expressões éticas notáveis. Diversamente, através da missão da Igreja, é Jesus Cristo que continua a evangelizar e agir... Por meio da proclamação do Evangelho, Jesus torna-Se sem cessar nosso contemporâneo”[4].
Na preparação para celebrarmos os oitenta anos da nossa Diocese de Piracicaba, reanimar a espiritualidade missionária é uma tarefa que deve ser vivenciada com alegria. Todos nós, clero, fiéis leigos e religiosos, precisamos redescobrir a missionariedade da nossa fé, do nosso batismo e do nosso ministério. Precisamos testemunhar, concretamente, os valores, a beleza e a Verdade do Evangelho, neste tempo marcado pelas contradições humanas e pelas desigualdades sociais. É precisamente assim que seremos reconhecidos como discípulos, como irmãos e irmãs de Jesus. O presente e o futuro da nossa Igreja particular passam por esse caminho.
2 – Pastoral missionária
“Ao ver a multidão, Jesus teve compaixão, porque estavam cansados e abatidos, como ovelhas sem pastor. Então disse aos seus discípulos: A colheita é grande, mas poucos os operários! Pedi, pois, ao Senhor da colheita que envie operários para a sua colheita” (Mt 9, 36-38)
A missão não é apenas um conjunto de tarefas realizadas num tempo estabelecido ou num determinado lugar. Entender a missão dessa forma seria restringir a força do Espírito e a amplitude do chamado missionário do Senhor. A missão é parte natural e essencial da Igreja e, portanto, da vida dos batizados, porque eles são membros da Igreja. A Igreja atua e se faz presente nas coisas do mundo pelo testemunho e pelo compromisso dos fiéis e dos ministros ordenados. A missão não é apêndice e nem enfeite pastoral. Assim diz o Papa Francisco sobre a missão: “É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nessa terra, e para isso estou neste mundo”[5].
O trabalho de evangelização e ação missionária realizado pelas muitas pastorais e seus agentes é algo que merece louvor e reconhecimento. O que seria dos ministros ordenados se não fosse a grande colaboração dos leigos na ação pastoral? Como seria possível chegar a todos os necessitados e doentes? Como seria possível catequisar crianças, jovens e adultos, preparar os catecúmenos e os casais para o matrimônio, além de tantas outras atividades de evangelização e oração? Mas, ainda assim, o tempo presente, com seus desafios e as novas realidades socioculturais, “requer novas atitudes pastorais por parte dos bispos, presbíteros, diáconos, pessoas consagradas e agentes de pastoral”[6].
Precisamos passar de uma pastoral reativa, para uma pastoral proativa. A pastoral reativa é aquela que atende à demanda, dos sacramentos e sacramentais, quando é procurada. O escritório paroquial torna-se uma espécie de central de distribuição de tarefas, para os ministros ordenados e para os agentes de pastoral. De outro modo, a pastoral proativa tem a forma da “Igreja em saída”, na qual cada batizado, pelo seu chamado missionário, é um trabalhador da messe e não apenas de uma pastoral específica. A pastoral proativa mantém as lâmpadas prontas, como na parábola das dez virgens[7], e está sempre atenta para o encontro com Jesus, na pessoa daquele que precisa.
A pastoral proativa é acolhedora e coloca em primeiro plano a pessoa, não o problema ou dificuldade. Ela caminha na direção da conversão pastoral e renovação missionária das nossas comunidades[8]. Mas nesse caminho, é importante a conversão pessoal, que “desperta a capacidade de submeter tudo a serviço da instauração do reino da vida. Os bispos, presbíteros, diáconos permanentes, consagrados e consagradas, leigos e leigas, são chamados a assumir uma atitude de permanente conversão pastoral, que envolve escutar com atenção e discernir ‘o que o Espírito está dizendo às Igrejas’ (Ap 2,29) através dos sinais dos tempos nos quais Deus se manifesta”[9]. Não pode haver conversão pastoral sem uma verdadeira conversão pessoal. Há muita gente cansada, abatida e afastada, que espera a compaixão dos operários da messe.
3 – Sinodalidade e pastoral
“Jesus, aproximando-se, lhes disse: Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as nações, batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 18-20)
O Cristo Ressuscitado apareceu aos seus discípulos quando estavam reunidos, depois de falar-lhes, ele os enviou para a missão. O envio missionário é ao mesmo tempo continuidade e compartilhamento. Jesus enviou os discípulos para que o trabalho continuasse e ao mesmo tempo compartilhou com eles a missão que recebeu do Pai, e assim nasceu a Igreja. “O mistério da santa igreja manifestou-se na sua fundação. Pois o Senhor Jesus iniciou sua Igreja pregando a boa nova, isto é, o advento do Reino de Deus prometido nas Escrituras havia séculos... Este Reino manifesta-se lucidamente aos homens na palavra, nas obras e na presença do Cristo... Por isso a Igreja, enriquecida com os dons de seu Fundador e observando fielmente seus preceitos de caridade, humildade e abnegação, recebeu a missão de anunciar o Reino de Cristo e de Deus”[10].
Pelo batismo, somos inseridos na Igreja, Corpo Místico de Cristo, e assim, pela ação do Espírito Santo, se constitui o povo santo de Deus. Um povo que é chamado a ser sinal e instrumento de redenção para todos, sal e luz no mundo[11]. Esse sinal é mais forte e visível à medida que o povo de Deus manifesta e vive a comunhão, à medida que caminha junto. “Encontramos o modelo paradigmático desta renovação comunitária nas primitivas comunidades cristãs, que souberam buscar novas formas para evangelizar de acordo com as culturas e as circunstâncias. Ao mesmo tempo, motiva-nos a eclesiologia de comunhão do Concílio Vaticano II, o caminho sinodal no pós-concílio e as Conferências Gerais anteriores do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Não esqueçamos que como nos assegura Jesus, ‘onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estarei no meio deles’”[12].
Essa é a proposta de uma Igreja sinodal, em que os diferentes carismas e ministérios colaboram entre si, para o bem do corpo inteiro. Essa perspectiva deve perpassar toda a nossa ação pastoral e deve nos levar a uma profunda reflexão sobre o caminho que já percorremos e o futuro que nos espera. É a presença do Ressuscitado, atualizada pelo Espírito Santo, que garante e capacita o povo de Deus, para o testemunho maduro da fé, sinal de comunhão e unidade. Isso nos faz compreender que caminhar juntos, e fazer um caminho sinodal, é mais do que uma questão de organização ou de funcionamento das estruturas. “O Sínodo é um percurso de efetivo discernimento espiritual, que não empreendemos para dar uma bela imagem de nós mesmos, mas a fim de colaborar melhor para a obra de Deus na história”[13].
O caminho sinodal é um caminho de renovação espiritual, eclesial e missionário, que em primeiro plano toca cada batizado, ministros ordenados e fiéis leigos, e num segundo momento se reflete nas ações pastorais e nas estruturas eclesiais. Nossa Igreja Particular de Piracicaba tem uma bela história de testemunho de fé, de partilha e caridade. Nesse tempo, em que nos preparamos para celebrar os oitenta anos de criação da nossa Diocese, queremos fazer esse caminho de renovação espiritual para fortalecer nossa ação pastoral. Temos certeza de que o Ressuscitado caminha conosco, por isso vamos adiante cheios de esperança.
Conclusão
A missão faz parte da essência da Igreja, mas a ação missionária é fruto do amadurecimento da fé. Quanto mais os discípulos consolidam a própria experiência teologal com Deus, tanto mais sentem o apelo de saída para a missão. O anúncio missionário precisa da experiência pessoal do discípulo, com o Senhor Ressuscitado, para que seja confiável e autêntico. A vida comunitária e de comunhão entre nós é a melhor forma de expressar que já estamos vivendo os sinais do Reino. Vale lembrar que as primeiras comunidades, nos Atos dos Apóstolos, eram reconhecidas exatamente por isso e atraíam muitos outros.
A renovação do espírito missionário é o que vai determinar o futuro da nossa Igreja. Uma vez que espiritualidade é vida segundo o Espírito, os discípulos precisam aprofundar a própria espiritualidade, pela escuta e meditação da Escritura, na celebração da Liturgia, recebendo os sacramentos e praticando as obras de misericórdia. Disse o teólogo Karl Rahner: “O cristão do futuro, ou será místico ou não será cristão”. Sobre isso podemos complementar que os cristãos de hoje, em vista do futuro, ou serão místicos e missionários, ou não serão nada.
Sobre a espiritualidade e a missão devemos ressaltar que elas estão intimamente relacionadas à Comunidade, que é a Igreja. O Ressuscitado soprou o Espírito sobre os discípulos reunidos no Cenáculo e depois os enviou em missão. Paulo e Barnabé subiram a Jerusalém, foram acolhidos pela Igreja e expuseram a questão da evangelização dos pagãos. Depois de ouvir o Espírito e considerar as novas circunstâncias, os apóstolos definiram os rumos da Igreja e da missão. Essa foi a primeira experiência eclesial de escuta e comunhão, foi a primeira experiência sinodal da Igreja. No presente queremos continuar a ser essa Igreja. Mas a missão não se encerra com o ano missionário, ela deve ser assumida como tarefa permanente.
Chegamos até aqui porque outros, antes de nós, ouviram o chamado do Senhor Ressuscitado e se colocaram a serviço. Renovar hoje o espírito missionário da nossa Diocese de Piracicaba é assumir um serviço permanente, em nossas pastorais, na catequese, nos grupos e movimentos, também como ministros ordenados, religiosos e fiéis. Os leigos são chamados, ainda, a assumir a sua missão nas coisas do mundo, na política, nas estruturas de governo e serviço, como profissionais nas diversas áreas do conhecimento humano. Somos uma Diocese, povo de Deus, que aprendeu muito, que enfrentou desafios, mas que não se cansa de produzir bons frutos para o Reino. Somos uma Diocese que continua a olhar o futuro com esperança e por isso assume a sua missão no presente.
Confio o Ano Missionário e todo o trabalho que será realizado à intercessão da Virgem Maria, com o título de Nossa Senhora dos Prazeres, a São José, patrono universal da Igreja e a Santo Antônio, padroeiro de nossa Diocese de Piracicaba.
Piracicaba, 16 de janeiro de 2023, segundo ano da posse canônica.
Bispo da Diocese de Piracicaba
[1] Catecismo da Igreja Católica, n 362.
[2] Cf. Documento de Aparecida, n 12.
[3] Cf. Documento de Aparecida, n 258.
[4] Mensagem para o dia das missões, 2017, n 3.
[5] Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 273.
[6] Documento de Aparecida, 291.
[7] Cf. Mt 25, 1-13.
[8] Cf. Documento de Aparecida, 365-372.
[9] Documento de Aparecida, 367.
[10] Lumen Gentium, n 5.
[11] Cf. Lumen Gentium, n 8.
[12] Documento de Aparecida, n 369.
[13] Discurso do Papa Francisco, 9 de outubro de 2021.