Com o presente artigo, iniciaremos uma série de reflexões sobre espiritualidade. Como, do ponto de vista da teologia, espiritualidade é a fé vivida na experiência concreta de uma pessoa, iremos, ao longo destas reflexões, tratar da espiritualidade de alguns personagens bíblicos e de alguns santos. Assim, escolhemos iniciar este caminho refletindo sobre a espiritualidade de Maria, a Mãe de Jesus, a partir daquilo que a Bíblia diz sobre ela.
Tomando o Evangelho de Lucas, encontramos a apresentação da pessoa de Maria dentro do quadro da cena da Anunciação do nascimento de Jesus (Lc 1, 26-38). Todavia, é importante observar que, na estrutura da narração de São Lucas, a cena da Anunciação está em íntima relação com o Anúncio do nascimento de João Batista (cf. Lc 1,5-25). A relação que existe entre essas duas anunciações é feita através do arcanjo Gabriel que, enquanto tal, é o mensageiro de Deus que traz o anúncio do nascimento de João a Zacarias e anúncio do nascimento de Jesus à pessoa de Maria. É aqui que nós encontramos os primeiros aspectos da espiritualidade da pessoa de Nossa Senhora e, para colher esses aspectos, é necessário perceber as diferenças que há entre Maria e Zacarias, assim como de suas respectivas atitudes.
Tanto Maria quanto Zacarias recebem o Anúncio do mesmo Arcanjo, portanto, ambos são destinatários de uma revelação divina de conteúdo semelhante: o anúncio de um nascimento por obra de Deus. Porém, um dos destinatários da revelação de Deus é Zacarias: homem, sacerdote e se encontra no templo, no momento da hora da oferta do incenso; o outro destinatário é Maria: mulher, leiga, que se encontra “num lugar” cotidiano, possivelmente em casa (cf. Lc 1,28). Com este paralelo, Lucas, na verdade, coloca lado a lado o Antigo e o Novo Testamento, onde Zacarias representa o Antigo e Maria abre a revelação do Novo. Em Zacarias, a revelação de Deus se dá a uma pessoa especial (um sacerdote), num lugar especial (o templo) e num momento especial (o litúrgico). Em Maria, a revelação se dá a uma leiga que se encontra em um lugar e momento comuns, ou seja, a revelação é acolhida no cotidiano da vida, mostrando que a primeira característica da espiritualidade de Nossa Senhora é a cotidianidade. Em Maria, encontramos uma espiritualidade do cotidiano, pois Ela tem a capacidade de acolher a visita de Deus, no dia a dia de sua vida, mostrando que a vida cotidiana, essa nossa vida de todo dia, é o primeiro lugar em que Deus está a nos falar; sem menosprezar a importância do templo e da liturgia. Na verdade, Maria ensina que há uma profunda relação entre vida e culto. Em sua espiritualidade o culto é a celebração da vida, quando existe a percepção de que a vida está permeada pela graça de um Deus presente.
Esta capacidade de perceber é um dom e, ao mesmo tempo, uma conquista. Dom porque é graça, conquista porque exige do ser humano o trabalho de elaboração do seu espírito, a capacidade de um olhar demorado sobre a vida e de escutar. Estas capacidades são conquistadas através daquilo que chamamos oração. Uma oração que começa na cotidianidade da vida (é a nossa oração pessoal que se alimenta da fé em Deus, dos acontecimentos que nos envolvem todo dia) e que é levada ao templo, para aí ser elevada, de maneira solene (litúrgica) ao Deus da vida. Assim, Maria ensina a importância de encontrar a presença de Deus nas vias da própria vida, pois os verdadeiros adoradores adoram em espírito e verdade (cf. Jo 4,23).
Pe Antonio César Maciel Mota
Pároco da Paróquia São João Batista em Rio Claro
Docente da Curso Diocesano de Teologia