A memória é uma reserva técnica e experiencial de lições consolidadas na vivência, a serem aprendidas e, muitas delas, revisitadas. Para isso, exige-se humildade, qualidade daqueles que têm alma de peregrino aprendiz, livre da habitual pretensão humana de acreditar que tudo sabe – cegueira que estreita horizontes e leva, até mesmo, à desconsideração de evidências interpelantes. E o começo de um ano novo depende da memória e de suas muitas lições para que sejam assumidos propósitos capazes de alimentar a esperança.
Nesse sentido, a mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz de 2020 apresenta importante indicação: “A nossa comunidade humana traz, na memória e na carne, os sinais das guerras e conflitos que se sucedem, com crescente capacidade destruidora, afetando especialmente os mais pobres e frágeis. Há nações inteiras que não conseguem libertar-se das cadeias de exploração e corrupção que alimentam ódios e violências. A muitos homens e mulheres, crianças e idosos, ainda hoje se nega a dignidade, a integridade física, a liberdade – incluindo a liberdade religiosa –, a solidariedade comunitária, a esperança no futuro. Inúmeras vítimas inocentes carregam sobre si o tormento da humilhação e da exclusão, do luto e da injustiça, se não mesmo os traumas resultantes da opressão sistemática contra o seu povo e os seus entes queridos”. Torna-se urgente aprender as lições que emergem desses tristes cenários, para a formulação inteligente e humanitária de soluções capazes de dar novo rumo à civilização contemporânea.
No Brasil, dolorosa memória está prestes a completar um ano: a tragédia-crime ocorrida em Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019. A dor revivida grita como lição, que não pode se restringir a investimentos midiáticos para limpar a imagem enlameada dos responsáveis pela tragédia. Urgente é alcançar a sabedoria que permite reconhecer a necessidade de se viver uma ecologia integral. A partir desse reconhecimento, é possível corrigir disparates que ameaçam o Brasil e o mundo, com ações rápidas e incisivas para derrubar a idolatria do dinheiro – hoje o seu domínio é pacificamente aceito por pessoas e sociedades. Não se consegue considerar, adequadamente, a desafiadora questão antropológica que permeia diferentes dinâmicas sociais: em nome do apego ao dinheiro, que se acumula para além do necessário, tudo se justifica, até a corrupção. O que vale é ganhar sempre mais, mesmo na contramão do bem de quem é mais pobre.
É preciso, pois, reconhecer as contradições do antropocentrismo no cenário contemporâneo, que coloca a razão técnica acima da própria realidade – dilui a força experiencial alicerçada no amor, que transforma, gera esperança e cura. Apegar-se apenas à razão técnica, desconsiderando a força experiencial com fundamentos no amor, conduz pessoas ao caos, por não saberem qual o seu verdadeiro lugar. Sem se autocompreender, de modo qualificado, o ser humano entra em contradição com a sua própria realidade. Aprenda-se a lição: é um erro depositar tanta confiança apenas na dimensão racional. Deve-se ir além e, em todas as práticas cotidianas, hábitos e decisões, investir no rico horizonte da ecologia integral. O ponto de partida é admitir que ninguém, individualmente, é capaz de tudo conhecer, assumindo que se sabe menos do que se pensa saber.
A perspectiva da ecologia integral oferece novos sentidos e, assim, possibilita enfrentar adequadamente as diferentes crises que ameaçam o mundo. Oportuno é retomar o significado da ecologia, conceito que remete às relações entre todos os seres vivos no ambiente onde vivem e se desenvolvem. Entre os desafios para fortalecer a harmonia necessária à vida de todas as criaturas está a consideração do risco devastador do consumismo, incentivado por diferentes mecanismos da economia global. Esses mecanismos deturpam as culturas, como denuncia o Papa Francisco, na Carta Encíclica sobre a Casa Comum. Debilitam a imensa variedade cultural que é um tesouro da humanidade.
Quando tudo se submete ao consumo e ao dinheiro, convive-se com a indiferença diante de situações muito graves, a exemplo dos extermínios em curso – de indígenas, moradores de rua, mulheres, crianças. Extermínios até dos hábitos simples e saudáveis, a partir de uma mentalidade que alimenta outros tipos de violência. Percebe-se, assim, a necessidade do aprendizado de uma grande lição: cuidar da fragilidade que arruína o alicerce do existir humano. É bem-vindo um amor civil e político, assumido como propósito, para qualificar práticas e serviços; avançar na direção de uma nova etapa civilizatória, capaz de substituir o atual cenário, tão ferido pelas desigualdades, mentiras e hipocrisias disseminadas.
As lições são muitas e exigem humildade, para cada pessoa adotar a condição de aprendiz. E no conjunto de aprendizados necessários, merece destaque a sábia interpelação do Papa Francisco, na Exortação Apostólica Alegria do Evangelho: “A pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual”. Seja aprendido o caminho para o cuidado espiritual, necessidade de todos, sem exceção – um rumo para lições e propósitos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)